Diferentemente do que ocorre em outros institutos jurídicos (compra e venda e permuta), a validade do contrato de doação entre ascendentes e descendentes (pais/filhos – avós/netos) não depende da anuência dos herdeiros não beneficiados pela transferência de propriedade. A anuência é exigida para a compra e venda e para a permuta e apenas para estes contratos, mas não para doação.

Esmiuçando o tema, temos os ensinamentos do professor Arnaldo Rizzardo[1]:

“Na compra e venda e na permuta, é indispensável o consentimento dos herdeiros não contemplados. Tratando-se de doação, tal acordo é desnecessário”.

No mesmo sentido, temos o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:

CIVIL. DOAÇÃO DE ASCENDENTE A DESCENDENTE. AUSENCIA DE CONSENTIMENTO DE UM DOS FILHOS. DESNECESSIDADE. VALIDADE DO ATO. ART. 171.

NÃO E NULA A DOAÇÃO EFETIVADA PELOS PAIS A FILHOS, COM EXCLUSÃO DE UM, SO E SO PORQUE NÃO CONTOU COM O CONSENTIMENTO DE TODOS OS DESCENDENTES, NÃO SE APLICANDO A DOAÇÃO A REGRA INSERTA NO ART. 1.132 DO CODIGO CIVIL. DO CONTIDO NO ART. 1.171 DO CC DEVE-SE, AO REVES, EXTRAIR-SE O ENTENDIMENTO DE QUE A DOAÇÃO DOS PAIS A FILHOS E VALIDA, INDEPENDENTEMENTE DA CONCORDANCIA DE TODOS ESTES, DEVENDO-SE APENAS CONSIDERAR QUE ELA IMPORTA EM ADIANTAMENTO DA LEGITIMA. COMO TAL – E QUANDO MUITO – O MAIS QUE PODE O HERDEIRO NECESSARIO, QUE SE JULGAR PREJUDICADO, PRETENDER, E A GARANTIA DA INTANGIBILIDADE DA SUA QUOTA LEGITIMARIA, QUE EM LINHA DE PRINCIPIO SO PODE SER EXERCITADA QUANDO FOR ABERTA A SUCESSÃO, POSTULANDO PELA REDUÇÃO DESSA LIBERALIDADE ATE COMPLEMENTAR A LEGITIMA, SE A DOAÇÃO FOR ALEM DA METADE DISPONIVEL. HIPOTESE EM QUE A MÃE DOOU DETERMINADO BEM A TODOS OS FILHOS, COM EXCEÇÃO DE UM DELES, QUE PRETENDE A ANULAÇÃO DA DOAÇÃO, AINDA EM VIDA A DOADORA, POR FALTA DE CONSENTIMENTO DO FILHO NÃO CONTEMPLADO.

RECURSO NÃO CONHECIDO.

(REsp 124220/MG, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, QUARTA TURMA, julgado em 25/11/1997, DJ 13/04/1998, p. 126)

Ocorre que tal exigência formal só pode ser aplicada se está reconhecida, à época do negócio, a relação de paternidade entre as partes do negócio. Se o reconhecimento da paternidade foi posterior, apesar do seu efeito declaratório, não se pode prejudicar negócios já consolidados em razão da própria proteção a segurança. Naturalmente, casos de fraude e simulação não podem ser tolerados, mas, se ausente tais vícios, negócios consolidados são protegidos e não podem ser desconstituídos.

Veja-se o que decidiu o STJ:

PROCESSO REsp 1.356.431-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, por unanimidade, julgado em 8/8/2017, DJe 21/9/2017.
RAMO DO DIREITO DIREITO CIVIL
TEMA Venda de cotas societárias de ascendente a descendente. Reconhecimento de paternidade post mortem. Falta de anuência da filha. Nulidade do negócio jurídico. Inexistência.
DESTAQUE
O reconhecimento de paternidade post mortem não invalida a alteração de contrato social com a transferência de todas as cotas societárias realizada pelo genitor a outro descendente.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
O ponto nodal do debate está em definir a validade ou não da venda de cotas de sociedade realizada por ascendente a descendente, sem a anuência de filha assim reconhecida por força de ação de investigação de paternidade post mortem. Inicialmente, cabe registrar que a norma proibitiva disposta no art. 496 do Código Civil de 2002 (antigo art. 1.132 do CC/1916) aplica-se à transferência de quotas societárias realizadas por ascendente sem o consentimento de algum dos descendentes. O STJ, ao interpretar o referido dispositivo legal, perfilhou entendimento de que a alienação de bens de ascendente a descendente, sem o consentimento dos demais, é ato jurídico anulável, cujo reconhecimento reclama: (i) a iniciativa da parte interessada; (ii) a ocorrência do fato jurídico, qual seja, a venda inquinada de inválida; (iii) a existência de relação de ascendência e descendência entre vendedor e comprador; (iv) a falta de consentimento de outros descendentes; e (v) a comprovação de simulação com o objetivo de dissimular doação ou pagamento de preço inferior ao valor de mercado ou, alternativamente, a demonstração do prejuízo à legítima. Tendo em vista o afastamento da simulação no negócio jurídico pelo Tribunal de origem, com base no acervo fático-probatório, faz-se necessário perquirir, ainda, – para a solução da controvérsia – se os efeitos da sentença que reconheceu a paternidade da autora retroagem à data do negócio jurídico, o que tornaria imprescindível sua anuência, ainda que posteriormente, diante da demonstração do efetivo prejuízo a sua legítima. Sobre o tema, a doutrina observa que a ação de investigação de paternidade tem caráter declaratório, visando a acertar a relação jurídica da paternidade do filho, afirmando a existência de condição ou estado, mas sem constituir, para o autor, nenhum direito novo, não podendo seu efeito retro-operante alcançar os efeitos passados das situações de direito. Sob essa ótica, embora seja certo que o reconhecimento da paternidade constitua decisão de cunho declaratório de efeito ex tunc, é verdade que não poderá alcançar os efeitos passados das situações de direito definitivamente constituídas. Na espécie, quando a autora obteve o reconhecimento de sua condição de filha, a transferência das cotas sociais já consubstanciava situação jurídica definitivamente constituída, geradora de direito subjetivo ao réu, cujos efeitos passados não podem ser alterados pela ulterior sentença declaratória de paternidade, devendo ser, assim, prestigiado o princípio constitucional da segurança jurídica.

[1] RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 327.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.